Do limbo da apatridia à pertença no Panamá Do limbo da apatridia à pertença no Panamá

Do limbo da apatridia à pertença no Panamá

2 de setembro, 2024

Tempo de leitura: 5 minutos

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Depois de se mudar da Colômbia para o Panamá aos 20 anos, Hermelinda passou grande parte dos 50 anos seguintes a viver com medo por não ter uma identidade legal.

Durante 71 dos 72 anos de vida, Hermelinda sentiu-se invisível. Eu era “proibida”. Uma pessoa que não é daqui, nem dali”, explica do alpendre da sua casa de cor turquesa com telhado de lata, na comunidade de Santa Fé, em Darién, no Panamá.

Poderia ter passado o resto da sua vida a sentir-se assim, se um encontro casual não tivesse posto em marcha o processo que levou o Panamá, o país que considera a sua casa há 52 anos, a reconhecê-la como apátrida.

O ACNUR estima que pelo menos 4,4 milhões de pessoas são apátridas, o que significa que nenhum país as reconhece como nacionais. No entanto, acredita-se que o número real seja muito mais elevado devido à falta de dados exatos e às dificuldades de contar as pessoas que não têm identidade legal. Muitos outros correm o risco de se tornarem apátridas porque enfrentam dificuldades em provar a sua ligação a um Estado.

Papéis extraviados

Originária da Colômbia, Hermelinda lembra-se de poucos pormenores sobre Belén de Docampado, a pequena cidade onde nasceu. Sabe que era longe de qualquer cidade, com as margens do rio de um lado e as montanhas no horizonte. Os pais eram agricultores que nunca aprenderam a ler nem a escrever, embora a mãe soubesse assinar o nome. Em Belén de Docampado, os nascimentos eram registados ocasionalmente, em cadernos maltratados que muitas vezes se perdiam.

“Quando se ia reclamar esses papéis, eles já não existiam. E foi isso que aconteceu a [mim e] aos meus irmãos e irmãs”, conta. Dos seus quatro irmãos, apenas a irmã mais nova, Enis, conseguiu encontrar o seu registo de nascimento.

Aos 20 anos, Hermelinda apaixonou-se e casou-se. Décadas antes de o movimento de refugiados e migrantes através da selva de Darién, que separa a Colômbia do Panamá, fazer manchetes internacionais, Hermelinda, o marido e a filha bebé apanharam um barco de Belén para La Palma, em Darién, em busca de melhores oportunidades para a família, acabando por se estabelecer em Santa Fé.

Foi no Panamá que Hermelinda se apercebeu pela primeira vez que não tinha os documentos necessários para começar a sua vida num novo país. Apanhou o barco de regresso a Belén e, para seu desalento, não encontrou qualquer prova da sua existência: nem certidão de nascimento, nem documento de batismo, nem bilhete de identidade.

De volta a Santa Fé, os dias transformaram-se em meses, os meses em anos e os anos em décadas. Entre essas décadas, a vida aconteceu. Teve o seu filho - Edín - que nasceu com problemas cardíacos e deficiências mentais. Teve mais dois filhos, que não sobreviveram.

Anos mais tarde, quando o marido morreu e a filha cresceu e partiu para a Colômbia, Hermelinda voltou-se para os campos atrás da sua casa para ganhar a vida, cultivando milho, arroz, plátano e mandioca. Outras possibilidades de ganhar a vida pareciam fora de alcance sem um BI, tal como a procura de cuidados médicos ou de serviços sociais.

Por ter nascido no Panamá, Edín tinha direito à nacionalidade panamiana, o que lhe permitia aceder a cuidados médicos e a certos benefícios como pessoa com deficiência. No entanto, continuava a depender inteiramente de Hermelinda, que tinha de o acompanhar em frequentes deslocações à cidade para consultas médicas. Em cada uma dessas deslocações, Hermelinda temia ser detida num posto de controlo da polícia por falta de documentos.

Um encontro que muda a vida

Embora o Panamá se tenha tornado signatário da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 em 2011, o procedimento de reconhecimento de um apátrida só foi estabelecido por lei em 2019. Desde então, o país fez avanços significativos na identificação de pessoas em risco de apatridia e na proteção dos direitos básicos dos apátridas, incluindo o seu acesso à educação, à saúde e ao direito ao trabalho.

De acordo com o último recenseamento, mais de 28.700 pessoas no Panamá estão em risco de apatridia. A maior parte delas nasceu no Panamá e pertence a comunidades indígenas que não possuem certidões de nascimento. Os restantes, cerca de mil indivíduos, nasceram - como Hermelinda - fora do Panamá e não têm registo de nascimento nem prova de cidadania.

Em 2021, no que Hermelinda pensava ser um dia normal, a sua vida mudou. Uma missão conjunta do ACNUR e do governo para garantir que os refugiados na província de Darien tivessem acesso a documentação adequada percorreu as estradas de terra batida de Santa Fé. Após décadas de demasiado medo para partilhar a sua situação com as autoridades locais, Hermelinda encontrou a coragem para procurar ajuda. O ACNUR reconheceu-a como uma pessoa em risco de apatridia e encaminhou o seu caso para o Ministério dos Negócios Estrangeiros.

O simples facto de saber que as autoridades competentes tinham aceite o seu caso deu esperança a Hermelinda. “Sentimo-nos diferentes, como se fôssemos outra pessoa. Gostava que alguém nessa situação [sem documentação] procurasse ajuda. E se encontrar outra pessoa na mesma situação em que eu estava, orientá-la-ia”, diz.

Em janeiro de 2024, o Panamá reconheceu-a oficialmente como apátrida. Recebeu um bilhete de identidade e agora, pela primeira vez em 72 anos, tem uma prova inegável da sua existência. “Quando tive o bilhete de identidade nas mãos, senti uma alegria enorme no meu coração. Desde esse momento até agora, sinto-me como se tivesse voltado à vida”, explica. “Se tenho de ir a algum lado, vou sem medo porque tenho um BI.”

A vida continua em Santa Fé, tal como dantes. Hermelinda trabalha nos campos com a sua catana. Semeia e colhe, transforma o milho em bolos de milho e ganha a vida para si e para Edín, que tem agora 47 anos e o sorriso da mãe. Mas a paz que Hermelinda sente é nova e excitante.

“Se eu fosse jovem, teria muitos planos. O bom é que consegui isto”, diz ela, sorrindo e segurando o seu BI.

Viola Eleonora Bruttomesso contribuiu para esta história.

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